Leitura
recomendada: Arno Vogel, Marco Mello, José Barros, A galinha d'angola:
iniciacao e identidade na cultura afro-brasileira, FLACSO, Río de Janeiro,
2012, 229 p.
A pesquisa
etnográfica que deu origem ao livro Galinha
d'Angola: iniciação e identidade na cultura afro-brasileira, já em 2ª.
reimpressão de sua 3ª. edição (RJ: Pallas, 2006), parte do princípio que a ida
ao mercado que antecede a "feitura do santo" é, também ela, parte do
processo de iniciação, configurando uma verdadeira lição-de-coisas para o
noviço.
Diante das
exigências primeiras sob a insígnia de Exu, o "senhor do mercado", os
filhos-de-santo se inserem definitivamente em um sistema de obrigações e
prestações, incorporando-se à estrutura hierárquica do terreiro, onde deverá
realizar o bori, ou seja, a "feitura da cabeça", segundo os preceitos
da vida piedosa de uma existência individualizada no candomblé, moldada pelos
ritos iniciáticos.
O ritual do
Orúko, ou dia-do-nome, revela a público a reprodução social do terreiro pela
adesão de novos adeptos, que saem do recolhimento no runcó catulados, raspados,
adoxados e com o corpo coberto de pintinhas brancas; metaforicamente
renascidos, portanto, como galinhas-d'angola. Considerada um "bicho
feito" na cosmologia do candomblé, a galinha-d'angola é o símbolo focal
dos ritos de iniciação, elo de comunicação direta entre os homens e os deuses,
ideal de plenitude da vida.
A obrigação
final de ir à missa encerra o processo ritual de iniciação com uma espécie de
desafio, que tem lugar no templo e no rito de outra confissão religiosa. A
vindicação do sagrado sob a forma de um escândalo, marcado pela presença
visível do povo-do-santo no espaço público da igreja católica, transforma-se em
uma experiência definitivamente inscrita na memória dos novos iniciados.
Afinal, por que o iaô tem de ir à missa?
No jogo
entre a humildade e a arrogância dos iaôs em romaria, os limites identitários e
o conflito deflagrado permitem uma interpretação que escapa das armadilhas
espistemológicas do "sincretismo", insuficiente para explicar as
transações e o engajamento conversacional estabelecido entre dois universos
religiosos distintos e dialeticamente complementares no Brasil.
A Galinha d'Angola - iniciação e identidade na
cultura afro-brasileira, dos professores Arno Vogel, Silva Mello e Pessoa de Barros, é um
clássico no campo dos estudos afro-brasileiros, equiparado às obras de Bastide,
Verger e Edson Carneiro, superando-as, no entanto, por não se restringir apenas
a um alentado e rigoroso estudo acadêmico, mas por constituir-se em pesquisa
militante, na qual os autores se deixaram envolver conscientemente pela riqueza,
sofisticação e sutileza das práticas cerimoniais do candomblé, no qual tudo é
sagrado, já que somos, simultaneamente, tudo e todos, quer animados quer
inanimados, partículas dos orixás.
Essa
postura inédita diante do universo a ser analisado resulta num desvendar dos
elementos-chave para a compreensão do que popularmente se convencionou chamar
de povo do santo. A galinha d'angola está presente nas mais importantes
cerimônias do candomblé. Sem ela não existiria vida, já que representa o
elemento primordial nos mitos de criação, o alimento de deuses e de homens, a
oferenda propiciatória de axé e equilíbrio, enfim, o bicho "feito"
tão à mostra que não se tinha dado a ela, até então, a devida importância.
[Extraído da web ifcs.ufrj.br/~lemetro/mello.php]